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Nas antas do Alentejo já se falou alemão
Georg e Vera Leisner começaram a vir a Portugal no final dos anos 1920 para estudar monumentos funerários com mais de seis mil anos.
Em 1943 a guerra obrigou-os a ficar. O seu arquivo começa a estar acessível online e com ele ainda se pode aprender muito.
Chegaram em 1943 para uma das suas estadias habituais, mas a guerra impediu-os de regressar a Munique. Foi já em Portugal que souberam que a sua casa – e com ela um arquivo com milhares de notas, fotografias, desenhos e cadernos de campo – tinha sido destruída num bombardeamento. Os alemães Georg e Vera Leisner estavam acostumados a viagens e a cenários de conflito e, por isso, é provável que tenham encarado o imprevisto como uma oportunidade de aprofundar os seus estudos sobre o megalitismo na Península Ibérica. Não eram um casal comum.
Ela, que nascera em Nova Iorque, vivera na China e tinha formação em artes plásticas e música, dedicava-se à arqueologia numa altura em que eram muito poucas as mulheres a fazê-lo; ele decidira tirar um curso universitário aos 60 anos, depois de pôr fim a uma carreira militar que lhe deu o posto de major e o levou a combater em vários cenários na Europa e na Ásia. Juntos deixaram-se fascinar pelos monumentos funerários da Pré-História ibérica. Ler as cartas que trocaram com os colegas portugueses e com investigadores em Harvard ou no Museu do Louvre e ver as fotografias dos seus trabalhos de campo, com Georg a sair de um buraco no chão à entrada de uma gruta em Gandal e Vera à secretária a catalogar peças, é como folhear um livro sobre a arqueologia da Arqueologia em Portugal.
O arquivo que reuniram ao longo de décadas de trabalho – o que sobreviveu, é claro – é do Instituto Arqueológico Alemão, a cujo grupo de investigadores pertenciam, mas está hoje à guarda da Biblioteca de Arqueologia, que ajudaram a reunir, instalada no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa. Uma equipa de arqueólogos e arquivistas, coordenada por Ana Catarina Sousa, pré-historiadora e professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, está a trabalhá-lo e a disponibilizá-lo online.
Ao todo são 49.500 documentos, dos quais 4000 estão já acessíveis, diz a arqueóloga que dirige este projecto que nasceu em 2012 com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) e que quer dar a conhecer o trabalho dos Leisner a um número cada vez maior de pessoas, tendo já servido de instrumento de pesquisa a várias teses de doutoramento.
“Os documentos estão todos tratados e alguns foram até restaurados mas não estão todos acessíveis porque, apesar de os Leisner serem muito rigorosos na identificação dos lugares por onde passaram, há imagens sem legenda, monumentos cuja localização desconhecemos e até materiais que temos de procurar na obra publicada pelo casal para sabermos exactamente o que são”, explica a arqueóloga, num intervalo das escavações no Cabeço do Pé da Erra, perto de Coruche, um povoado calcolítico numa zona de montado, rodeado de touros bravos. “Não podemos permitir a consulta a documentos cuja informação esteja incompleta se achamos que temos condições de a completar.”
Mulher extraordinária
Para já, online estão apenas as cartas que Georg (1870-1957) e Vera (1885-1972) Leisner trocaram com colegas portugueses e estrangeiros, com representantes de instituições que poderiam vir a financiar o seu trabalho ou com familiares e amigos. O que torna difícil o tratamento deste conjunto é sobretudo o facto de a maioria da correspondência ser em alemão e de alguns exemplares estarem até escritos em caracteres rúnicos (alfabeto que também se usava na Alemanha até à década de 1940).
Ainda que seja difícil ler muitos dos documentos, é seguro dizer que este arquivo de correspondência dá uma visão global do trabalho dos Leisner porque, explica a arqueóloga, não se limita a ter apenas as cartas que o casal recebia – seguindo a prática comum no contexto profissional da época, sempre que Georg e Vera escreviam a alguém faziam uma cópia antes de enviar a carta (o equivalente actual a conservar na caixa das mensagens enviadas um email relevante).
“Eles têm perfeita noção da importância do que estão a fazer e querem que tudo fique registado”, diz, lembrando que a obra publicada vem co-assinada por ambos, o que não é hábito na época. “Há muitas mulheres de arqueólogos e outros cientistas que aparecem quase como assistentes, secundarizadas, mas não neste caso. Mesmo sem que ela tivesse um grau universitário, Georg Leisner faz questão que Vera apareça como autora, par a par, sem que fosse de maneira alguma subalternizada. Aqui chamavam-lhe dona Vera, misturando o respeito com o facto de ela não ter um título académico.” E ela merece-o, defende Ana Catarina Sousa, em boa parte porque, depois da morte do marido, continua o trabalho de ambos de forma exemplar. “É uma mulher extraordinária, incansável. Corre o país todo e trabalha quase até ao fim.” Vera Leisner morre em Hamburgo, em 1972, aos 87 anos, mas em 1969 ainda participa em escavações na Praia das Maçãs.
Vera conhecia bem Portugal e é bem provável que tivesse acompanhado Georg, com quem casa em 1909 e com quem percorre a Itália e o Egipto, logo na sua primeira viagem à Península, em 1929-30, quando o pré-historiador estava a fazer a investigação para o doutoramento na Universidade de Marburgo, que conclui em 1932, aos 62 anos. Defendida a tese sobre o megalitismo no nordeste peninsular, o casal regressa entre 1932 e 1934, voltando por um período ainda mais alargado durante a Segunda Guerra.
Levantamento único
Georg e Vera Leisner dedicaram-se ao estudo dos monumentos megalíticos dos quarto e terceiro milénios a.C. (chama-se megalistimo ao fenómeno cultural da Pré-História do Mediterrâneo ocidental e da Europa banhada pelo Atlântico marcado por construções arquitectónicas com grandes blocos de pedra).
É deles o ambicioso levantamento deste tipo de estruturas existentes na Península Ibérica, publicado em vários volumes em alemão ao longo de décadas, o primeiro dos quais lançado logo em 1943 (Die Megalithgräber der Iberischen Halbinsel). “Ainda hoje os arqueólogos confiam neste levantamento – é o único que existe com esta abrangência, aliás –, e que é fundamental por vários motivos”, garante a coordenadora do projecto, explicando por que razões se trata de uma “obra excepcional”: “O trabalho dos Leisner é exaustivo e traz-nos muita informação até sobre monumentos que hoje já não existem porque foram derrubados por causa da agricultura ou da construção. É raro encontrarmos hoje alguma coisa relacionada com o megalitismo à superfície que eles não tenham já identificado. E depois há que levar em conta o rigor das suas observações e descrições, imbatíveis para os meios da época.”
Ana Catarina Sousa atribui este rigor ao facto de ambos serem absolutamente metódicos, associando a disciplina militar de Georg, um perfeccionista, à habilidade de Vera, uma “desenhadora exímia”, para o registo das estruturas – antas, tholos (monumentos de falsa cúpula), hipogeus (grutas escavadas na rocha) - e dos materiais que resultavam das escavações, que estão, na sua maioria, depositados no Museu Nacional de Arqueologia (MNA).
Só em Portugal identificam cerca de 4000 monumentos espalhados um pouco por todo o território, concentrando-se sobretudo no Alentejo (a zona de Reguengos de Monsaraz é uma das mais importantes para o megalitismo europeu), nas Beiras e no concelho de Cascais. Mas as suas viagens a Espanha também são recorrentes (a partir da Segunda Guerra vivem entre Portugal, Espanha e a Alemanha).
Apesar de só agora estar a tratar de forma mais sistemática o acervo fotográfico do arquivo Leisner, a equipa de Ana Catarina Sousa tem já muitas e curiosas imagens para mostrar. Numas vê-se Vera sentada junto a uma anta na planície alentejana ou a fotografar a costa em São Pedro do Estoril. Noutras – parece inacreditável o que se vestia para trabalhar numa escavação arqueológica nas décadas de 30 e 40 – Georg aparece acompanhado de algumas das mais importantes figuras da arqueologia portuguesa, como Afonso do Paço e Manuel Heleno, o então director do MNA.
“Eles têm muitos amigos na comunidade arqueológica portuguesa, vêem as suas investigações apoiadas com dinheiro e publicações por várias entidades oficiais e mantêm uma actividade intensa na edição das suas pesquisas. Trocam muitas cartas com colegas no estrangeiro de universidades muito prestigiadas e com alguns dos principais pré-historiadores da época, como o Gordon Childe e o Glyn Daniel, porque o seu trabalho interessa a muita gente, é muito relevante e respeitado.”
No plano científico, explica a arqueóloga, o casal alemão ajuda a mudar ideias feitas, como a de que tudo o que era produto de uma certa evolução civilizacional vinha do Médio Oriente, onde se inventou a escrita e as cidades. “Até aos Leisner acreditava-se que os monumentos megalíticos eram uma espécie de cópias mal feitas dos que se podiam encontrar no Iraque ou na Síria. Eles vêm provar, precisamente, que aquilo que há na península é anterior.”
O rigor do seu levantamento estabeleceu as bases das sequências arquitectónicas do megalitismo peninsular, acrescenta Ana Catarina Sousa, e isto antes de poderem recorrer ao método de datação por carbono 14, actualmente à disposição dos investigadores: “Ainda antes da revolução do radiocarbono, o trabalho desenvolvido permitiu confirmar a antiguidade do megalitismo peninsular face a outros monumentos do Mediterrâneo oriental. Muitas das propostas ainda são hoje válidas e discutidas como base de trabalho”, diz, garantindo que, passadas tantas décadas, é ainda impossível a qualquer pré-historiador estudar este período na Península Ibérica sem se cruzar com o casal alemão.
O espólio dos Leisner vai estar no centro de um colóquio na Faculdade de Letras sobre arquivos históricos na arqueologia portuguesa. Será a 4 de Fevereiro, dia em que Vera Leisner faria anos.
por Lucinda Canelas, in Público | 20 de agosto de 2015
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público