Cerca de um quinto dos palácios e quintas de recreio existentes na capital está mal conservado ou mesmo em ruína.
Alguns estão classificados mas nem a lei os protege do abandono e do vandalismo.
Quem passa na Rua da Junqueira, entre a Cordoaria e Belém, nem adivinha o que está no número 138. Por detrás do gradeamento e do matagal que cresceu descontrolado, o edifício mal se vê. É preciso contornar os muros e subir a Calçada da Boa Hora para ter a visão desoladora de um palácio abandonado.
Através do portão de ferro vê-se a fachada principal do palácio da Quinta das Águias, cuja entrada foi vandalizada com graffiti. A tinta cor de salmão a descascar nas paredes e as janelas abertas ou com vidros partidos sugerem anos de abandono. Dos painéis de azulejos azuis e brancos que revestiam parte das fachadas do edifício há apenas vestígios. No chão, coberto de erva seca, há lixo espalhado. No jardim reina um caos verde e às palmeiras já só restam os enormes troncos. As estátuas das águias que decoravam o portão já “voaram”.
Vão longe os tempos áureos desta quinta setecentista, mandada construir por Manuel Lopes Bicudo, com projeto de Lodi e de Carlos Mardel, e adquirida em 1731 por D. Diogo de Mendonça Corte-Real, secretário de Estado do rei D. José I. No início do século XX, a quinta foi parar à família do médico Lopo de Carvalho e foi vendida nos anos 90 a Ricardo Oliveira, constituído arguido no caso BPN. O estado de conservação do palácio, da capela e do jardim com quase 7000 m2 foi-se deteriorando. O imóvel, classificado como imóvel de interesse público e abrangido por seis zonas especiais de proteção, está para venda na Sotheby's há vários anos, por um preço que em 2010 rondava os 20 milhões de euros.
Como o palácio da Quinta das Águias, há cerca de 30 palácios e quintas de recreio na capital "num estado de incúria e degradação incompatível com o seu grau de classificação e importância histórica", denuncia o Fórum Cidadania Lisboa. Este movimento cívico tem alertado para o mau estado de conservação destes espaços, públicos e privados, tendo feito um inventário online. No entanto, as diversas cartas de alerta que enviou para a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) e para a Câmara de Lisboa, proprietária de 16 palácios (alguns deles em ruína), ficaram sempre sem resposta.
"Infelizmente há vários palácios neste estado e o mais gritante é o de Almada-Carvalhais", no Largo do Conde Barão, diz Paulo Ferrero, membro fundador do Fórum. "É um escândalo", lamenta, lembrando a beleza do pátio setecentista, dos salões, dos tetos e das varandas. O palácio, monumento nacional desde 1920, pertence a um fundo imobiliário detido em parte pela Caixa Geral de Depósitos. Segundo Ferrero, em janeiro, numa conferência organizada pelo Fórum e pelo Instituto de História da Arte da Universidade Nova de Lisboa, o diretor da DGPC revelou que já teria pressionado os proprietários daquele palácio para fazerem obras, exigidas também pelos regulamentos municipais. "Ninguém consegue fazer valer a lei", lamenta Ferrero.
O problema, para o historiador José de Sarmento Matos, “é que os palácios só se mantêm se tiverem uma função que os torne dinâmicos dentro da própria cidade”. A solução mais comum é a transformação em hotéis, com os promotores "cada vez mais interessados" em aproveitar a história e o património para "valorizar os seus ativos", afirma. O olissipógrafo tem estado envolvido em alguns projetos na capital - incluindo dois para o Palácio da Quinta das Águias, o último dos quais com a assinatura do arquiteto Souto de Moura, mas nenhum seguiu em frente. Segundo a câmara, em 2005 deu entrada um pedido de licenciamento de obras de alteração e ampliação do palácio, inicialmente indeferido e mais tarde aprovado com condicionantes, estando ainda em apreciação na DGPC. Entretanto, “o proprietário foi intimado à realização de obras de conservação, não tendo ainda dado resposta”, informa a autarquia.
Para Sarmento Matos, o edifício não tem área suficiente para acolher um hotel. "Era fantástico para uma embaixada", sugere. O olissipógrafo admite que tem "dor de alma" quando vê um palácio abandonado mas pede que se evite o "fundamentalismo patrimonialista". "Não se pode pedir ao Estado que se substitua aos proprietários, temos que ter uma hierarquia" no que toca aos investimentos, argumenta.
Em 2009, o Governo criou o Fundo de Salvaguarda do Património Cultural, atualmente com uma dotação de 4,8 milhões de euros, para acudir a situações de emergência em relação a bens culturais públicos classificados, mas até agora nenhuma entidade pediu apoio para reabilitar palácios.
Atração turística As famílias da classe alta foram construindo os seus palácios e casas de verão perto da residência do rei, depois de a corte se fixar no centro histórico de Lisboa. Na Junqueira também há vários palácios - a própria Câmara de Lisboa divulga na sua agenda cultural um percurso guiado pela Junqueira Palaciana, que inclui a Quinta das Águias.
"Há uma grande procura por parte dos turistas estrangeiros", afirma Augusto Moutinho Borges, que costuma ser guia em visitas comentadas aos palácios de Lisboa, através do projeto Lisboa Autêntica. Segundo este investigador na área do turismo e da cultura, quem se inscreve nestes passeios quer saber a história dos espaços e das pessoas que o habitaram, e se possível visitar o interior, como acontece em várias cidades europeias, nomeadamente em Espanha e Itália. Moutinho Borges lamenta a falta de "sensibilidade" municipal para as questões do património, inclusive para o que lhe pertence. Defende a criação de um roteiro municipal dos palácios da Restauração e de incentivos à recuperação destes espaços aproveitando, por exemplo, os fundos comunitários.
por Marisa Soares, in jornal Público | 6 de julho de 2015
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