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Como era ser pintor em Portugal

Exposição antológica da obra de António Charrua, no Centro de Arte Moderna.

 Grande X Horizontal com Interferência… Vermelha,1988
A primeira exposição antológica da obra de António Charrua é também a oportunidade para uma reflexão sobre os caminhos que se abriam aos artistas no tempo do Estado Novo.

Pode dizer-se sem muita hipótese de errar que a obra de António Charrua (1925-2008) é praticamente desconhecida do grande público. O nome, pelo contrário, ressurge pontualmente em escritos ou trabalhos de investigação sobre o chamado “grupo de Évora”, que reuniu este artista com os pintores Palolo, Areal, Álvaro Lapa e Joaquim Bravo durante a década de 60. Mais tarde, a partir dos anos 70, Charrua pouco expôs até à abertura da galeria Palmira Suso em 93, com quem viria a trabalhar. X de Charrua, comissariada por Leonor Nazaré e Ana Ruivo, acaba finalmente por trazer a merecida exposição antológica às salas do Centro de Arte Moderna (CAM).

Montada nos dois andares fronteiros à grande nave do CAM, a exposição surpreende-nos, desde logo, pela quantidade de trabalhos que as duas curadoras reuniram. Charrua participou nas três grandes exposições de artes plásticas organizadas pela FCG em 1957, 1961 e 1986. Foi também bolseiro desta casa, e pode por isso supor-se que as reservas do museu acolhem bom número de peças suas. Mas a consistência e a quantidade dos trabalhos apresentados, criteriosamente divididos por núcleos organizados segundo uma sequência simultaneamente cronológica e disciplinar, permite perceber que muito do que aqui está pertence a colecionadores particulares.

Charrua viveu em Lisboa, Coimbra, a Parede e Évora. Logo em 1945 descobria Van Gogh e Picasso, e este último, sobretudo, iria influenciar decisivamente os primeiros anos do seu trabalho como artista. Um pouco mais tarde conhece Júlio Resende. A partir dos anos 50 participa regularmente nas exposições coletivas mais importantes do seu tempo, e trabalha em gravura, uma atividade muito comum na altura no meio artístico português. Em 1960, como já referimos, ganhou uma bolsa da Gulbenkian para viajar pela Europa. Visitou então a Espanha, França, Itália, Suíça, Bélgica e Holanda. Pela mesma época, há migrações plásticas evidentes entre a obra de Charrua e a dos seus colegas do grupo de Évora, todos um pouco mais novos. Outras amizades, como a de Henrique Ruivo, Vergílio Ferreira e Júlio, serão sempre motivo de crescimento como artista e pessoa.

Entretanto, a obra plástica vai-se fixando no formulário que hoje conhecemos como seu. Picasso, a admiração dos anos de juventude, que Charrua segue inclusive na prática da cerâmica, por exemplo, é substituído logo depois das suas viagens pela Pop americana, com referências abundantes às combine paintings de Rauschenberg, por exemplo, ou aos letrismos de Jasper Johns, sempre sujeitos a uma contenção cromática que se fixa nas três cores primárias, além do negro e do branco. É também por aqui que esse paradigma anglo-saxónico, que por esta época substitui o da Escola de Paris no meio artístico português, passa para os seus colegas mais novos. Na exposição, se a pintura e as assemblages de Charrua roçam por vezes o repetitivo, é notável a presença aqui e ali de motivos, processos e conceitos que serão desenvolvidos mais tarde sobretudo por Palolo, Areal e Bravo. Dizem-nos no catálogo, com alguma elegância, que “Charrua teve particular facilidade em viajar.” De conversas com quem o conheceu, no próprio dia da inauguração da exposição, ficamos a saber que foi ele também quem com frequência ajudou de inúmeras formas os amigos artistas menos afortunados.

E, nisto, o percurso de Charrua foi particularmente exemplificativo daquilo que um artista em Portugal nos anos de 60 e 70 podia ou devia ser: plurifacetado — para além das peças já referidas, Charrua fez também vitrais, tapeçarias e obras de arte pública; e deixou ainda um conjunto de cadernos de desenhos notáveis; sem grandes ilusões quanto à possibilidade de viver da sua arte, e condenado a manter-se informado sobre a arte internacional ou através de viagens, ou através de reproduções em revistas da especialidade. Tudo isto se aplica a Charrua. Mas seria injusto não nomear a ética de vida que o levou a não deixar cair nunca os amigos. E, sabe-se lá, a permitir que com essa atitude os mesmos pudessem criar a obra notável que criaram.

Desta rede de amizades, ficou aquele que foi o grande traço deste grupo de Évora: a tentativa de criar uma obra em consonância com as grandes inquietações internacionais num tempo em que a informação era escassa. Esta atitude, que é hoje usual em qualquer artista saído de uma escola de arte, era raríssima no tempo em Portugal.

Sobretudo, quando era assinada por artistas que, em vez de emigrar, aqui tinham escolhido viver.

X de Charrua
Artista(s): António Charrua
Comissário(s): Ana Ruivo e Leonor Nazaré
Lisboa. Centro de Arte Moderna. R. Dr. Nicolau de Bettencourt.
De 3ª a Dom, das 10h às 18h. Até 26/10.

por Luísa Soares de Oliveira, in jornal Público | 26 de junho de 2015
Notícia em Destaque, no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público
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