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Há uma exposição de arte política no CAM
Chama-se As Ruas de Lisboa e é composta de nove colagens de papel que as cores, as figuras e as palavras fazem vibrar.
Uma berraria alegre que fala de um tempo e uma cidade: os anos que se seguiram ao 25 de Abril, com ecos de combates políticos, e Lisboa quando nela se liam e ouviam outras vozes. Realizada em 1977 por Ana Hatherly, As Ruas de Lisboa mostra-se agora na sua integridade, numa das paredes frontais da nave do CAM, e oferece um ponto de vista e uma entrada para uma exposição concebida a partir das coleções da Fundación La Caixa, do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona (MACBA) e do próprio CAM. “É a primeira vez que se reúnem as três num espaço expositivo”, assinala Isabel Carlos, comissária da exposição. “A ideia nasceu há dois anos. O Museu Berardo já tinha apresentado peças do acervo da La Caixa e achei mais interessante alargar o âmbito da coletiva ao MACBA. Tinha a oportunidade de trabalhar com três acervos da Península Ibérica e de arte do século XX”. Definido um “âmbito”, seguiu-se a elaboração de conceitos que organizassem a mostra. “Quando comecei a ver as obras dei-me conta que, no século passado, Espanha e Portugal tinham vivido social e politicamente entre a tensão a liberdade. Conheceram ambos ditaduras e conflitos. A Espanha sofreu uma guerra civil, Portugal, a sua guerra colonial, mas também verifiquei que essa dicotomia extravasa o contexto ibérico e que se encontrava em toda a arte ocidental da segunda metade do século XX”.
São várias as obras que, evocando questões, narrativas ou símbolos, lidam com a esfera sociopolítica. De Ana Hatherly, para além das colagens, é possível ver o belíssimo filme Revolução (1975) e destaque-se a presença de Not all that moves is red (2012), de Azier Mendizabal, artista que em 2010 teve um notável individual na Culturgest de Lisboa (o Ípsilon dedicou-lhe, na ocasião, três páginas). É um simples e longo pano vermelho e preto que faz da abstração uma ilusão ótica. Mais do que meras formas geométricas, o espectador verá signos, representações, objetos de culto. Bandeiras. No mesmo “núcleo” de obras, mas apontando a outros contextos, estão as instalações de Antoni Muntadas, as gravuras de Richard Hamilton, alusivas aos conflitos na Irlanda do Norte, ou o filme do cineasta Eric Baudelaire, The Anabasis of May and Fusako Shigenobu, Masao Adachi, and 27 Years without Images, premiado no DocLisboa de 2012 (cuja exibição será programada em sessões diferentes).
Um clima de guerra
Tensão e Liberdade assume um propósito. Lembrar que a arte contemporânea, enquanto prática e expressão livre, deveu a sua existência a um conjunto de condições políticas, sociais e económicas que entretanto se fragilizaram. “Inevitavelmente reage ao contexto em que vivemos”, concorda a também diretora do CAM. “A escolha das obras faz todo o sentido neste momento em Portugal ou Espanha, no mundo. Na Europa, vivemos numa grande tensão, provocada por um clima de guerra económica que limita seguramente a liberdade, o que nos obriga a lutar por ela. Caso contrário, não tenho dúvidas, acabaremos por perdê-la. O excesso de tensão mata a liberdade. Cria conflitos sociais, extremamente violentos”.
Há uma obra que, porventura mais do que todas as outras, protesta discretamente contra a ameaça que Isabel Carlos descreve.
Trata-se da série de ilustrações de João Abel Manta para o livro Dinossauro Excelentíssimo (Arcadia, 1972), de João Cardoso Pires. Nunca tinham sido mostradas antes num espaço expositivo e exemplificam um outro tipo de liberdade: o de expor ilustração (ou cartoon), um género tantas vezes desconsiderado por artistas, críticos de teóricos de arte, numa mostra de arte contemporânea. Os desenhos, acompanhados de fotografias em composição espantosas, sobrevivem ao texto do escritor e retratam, com uma sátira muda, seca, a vida de Salazar-Portugal. A opressão, o medo, as sombras, a farsa, os corpos curvados ou infantilizados, as capas negras chocam com as cores de Ana Hatherly. Isabel Carlos refere que a decisão de expor os cartoons de João Abel Manta foi uma reação ao ataque ao Charlie Hebdo em janeiro passado, mas o espectador é livre de fazer as suas leituras. No texto de Sandra Vieira Jürgen, que complementa a apresentação dos desenhos, o presente ressuscita frases de José Cardos Pires. Basta ao espectador querer, saber lê-las.
A liberdade dos artistas
A tensão formal e física e a ironia que comunicam é indissociável da liberdade dos artistas no uso de materiais e na apropriação de objetos, aspeto que surge, com outra intensidade, numa seleção de vídeos e desenhos de Bruce Nauman. “É o artista mais representado na exposição, diz Isabel Carlos. “Há uma sala que lhe será quase toda dedicada. Para mim, é uma das figuras mais determinantes da arte contemporânea e da segunda metade século XX e tem sido pouco visto em Portugal. Acho mesmo que conhecemos pouco o seu trabalho. Vemo-lo nos livros e nas revistas, é muito citado, mas o contacto com a sua obra em Portugal aconteceu poucas vezes”. A seleção, originária da coleção do MACBA centra-se num conjunto de vídeos, realizados entre finais dos anos 60 e inícios dos anos 70, que exploram a tensão entre o corpo e o espaço (Revolving Upside Down) ou entre a ação humana e o próprio corpo, como (“Pulling Mouth”). Mas a comissária também salienta Good Boy, Bad Boy, vídeo que em 1985 assinalou o regresso do artista ao suporte e, pela primeira vez, o recurso a atores profissionais. “É um trabalho poderoso que nos envolve no seu crescendo de som e agressividade e é atravessado por questões raciais e de género”.
Outra tensão pode despontar no CAM: a que surge, com frequência, entre as obras e os espectadores. As causas podem ter origem em convicções políticas, gostos, sensibilidades, e a tensão, os impasses gerados podem não ter resolução ou desfecho. É o que promete a instalação de Mike Kelley, nunca antes mostrada em Portugal, que convida o espectador a entrar no seu interior, rastejando. Em busca do conhecimento, da política, da arte para encontrar a lareira de uma casa da classe média, elevada à condição de altar, de totem. O contraste entre The Trajectory of Light in Plato´s Cave (From Plato’s Cave, Rothko´s Chapel, Lincoln’s Profile) e For Mozambique (2008), de Ângela Ferreira manifesta-se. À anarquia sem redenção de Kelley contrapõe-se a meditação que a instalação da artista portuguesa, reunindo imagens em movimento e arquitetura, vem projetar sobre o espaço.
Será Tensão e Liberdade a exposição mais “política” que o CAM alguma vez organizou? “Durante a minha direção seguramente que é”, responde Isabel Carlos. “Isso é evocado e de uma forma muita clara. E deu-me um gozo particular fazê-la a partir de acervos de três museus também para mostrar obras pouco vistas em Portugal ou inéditas. Porque os museus não são apenas contentores de obras de arte, mas contentores de ideias e de ações, da história e da cultura do homem no século XX. Não estão fechados”.