"É de Cultura como instrumento para a felicidade, como arma para o civismo, como via para o entendimento dos povos que vos quero falar"

Obras de referência da cultura portuguesa

"AUTO DA BARCA DO INFERNO"

de GIL VICENTE

Análise de Duarte Ivo Cruz
Tradução: Alexandra Leitão


"AUTO DA BARCA DO INFERNO" 
E AS RESTANTES "BARCAS" DE GIL VICENTE

O contexto histórico da vida e obra de Gil Vicente conduz-nos a considerações relativas ao próprio conteúdo das obras respetivas. E aí, é oportuno referir os sinais que o "Auto da Barca do Inferno" nos legou, no que se refere, precisamente, à opção estratégica dominante e à política oficial decorrente.

Ou, por outras palavras, temos presente a ideologia e a estratégica assumida na "Barca" e a contida no "Auto da Índia", aquela claramente apologética da expansão para África como aliás encontramos noutras obras e passagens do universo vicentino, esta extremamente crítica ainda que não diretamente assumida, no que respeita à expansão para o Oriente.

Há mesmo uma aproximação entre o "Auto da Índia", no que contem de mais profundo, e o episódio camoniano do Velho do Restelo está na mesma "linha estratégica": afinal, o "velho de aspeto venerando (que) meneando três vezes a cabeça descontente / a voz pesada um pouco alevantando" defende a expansão para Marrocos e não para a Índia, até poderia ser Mestre Gil!  Com a circunstância temporal de que o "Auto de Índia" é de 1509, e a "Barca do Inferno" de 1516. Entre ambos, temos a formidável "Exortação da Guerra": e aí, já Gil Vicente proclama a ligação intima entre o destino nacional, a missão religiosa e a guerra em Marrocos: "Avante, avante Senhores / pois que com grandes favores / todo o céu vos favorece: / el-rei de Fez esmorece / e Marrocos dá  clamores.(...) Alabardas, alabardas! / espingardas, espingardas!"

Ora, no "Auto da Barca do Inferno", os "quatro Fidalgos, cavaleiros da Ordem de Cristo, que morreram nas partes de África e vêm cantando a quatro vozes", salvam-se exatamente pelos seus feitos de armas. Poisa diz o Anjo: "Ó cavaleiros de Deus / a vós estou esperando / que morrestes pelejando / por Cristo, senhor dos céus. / Sois livres de todo o mal / santos por certo sem falha; / que quem morre em tal batalha / merece paz eternal"...

Ora, sabemos muito bem que o "Auto da Barca do Inferno" contem uma colossal galeria crítica da sociedade do seu tempo, retratada na dureza de uma, conduta condenável à luz da moral da época, mas também quase sempre se não sempre, à luz da moral dos nossos dias. Com a particularidade, insista-se de cobrir  poderosos e humildes nas categorias sociais e económicas, e até jurídicas, da transição portuguesa dos resquícios de certa Idade Média remanescente para  a nova sociedade que o renascimento e a expansão estavam a formatar - ou tinham já formado e o dramaturgo genial mas de transição estética que é Gil Vicente compreendia e como poucos no seu tempo condenava...

Já as outras "Barcas - do Purgatório (1518) e da Glória" (1519) são menos interessantes como documento e como expressão poética e dramática. Mas mesmo assim: trata-se de duas peças de alto nível, talvez menos acutilantes na expressão global da sua própria estrutura estética e mensagem social. E mesmo assim: o Lavrador que, na "Barca do Purgatório", diz que "nós somos vidas das gentes e mortes das nossas  vidas"; ou a belíssima oração do Papa à Virgem Maria no final doa "Barca da Glória", pedindo que "por las lagrimas sin cuento / que lloraste en aquele dia / que tu hijo padecia / que nos livres de tomento / sen tardar" - mesmo reconhecendo-se que não há, aqui, a força de verbo e conteúdo e a modernidade de outras obras de Gil Vicente, regista-se a qualidade extraordinária desta dramaturgia.



AUTO DA BARCA DO INFERNO AND THE OTHER BARCAS by GIL VICENTE

The historical context of Gil Vicente’s life and work leads us to considerations as to their actual content. Here, we should point out the signs left us by Auto da Barca do Inferno, precisely regarding the dominant strategic option and the ensuing official policy.

In other words, we must bear in mind the ideology and the strategy both in the Barca and that in Auto da Índia. The former is clearly apologetic concerning our expansion to Africa, something in fact that we encounter in other works and excerpts from Vicente’s universe, whilst the latter is extremely, although not directly, critical, of expansion to the East.

There is even a link between Auto da Índia in its deepest meaning and the episode in the Lusiads of the Old Man of Restelo, along the same “strategic line”: in fact the “old man of venerable aspect who shaking his head three times in discontent / raising his heavy voice” defends expansion to Morocco and not to India, might even be Master Gil!  Note that Auto de Índia dates from 1509 and Barca do Inferno from 1516. Between the two we have that remarkable Exortação da Guerra, in which Gil Vicente proclaims the close link between national fate, the religious mission and the war in Morocco: "Forward, gentlemen, forward / as with great favours / does the sky favour you / the king of Fez is failing / and Morocco clamouring.(...) Halberds, halberds! / guns, guns!”

Now, in Auto da Barca do Inferno, the “four gentlemen, knights of the Order of Christ, who died in Africa and sing in four voices” are saved precisely because of their feats of arms. For as the Angel says: "Oh knights of God / I await you / who died fighting / for Christ, lord of the skies. / You are delivered of all evil / certainly saints without fail; / for those who die in such battle / deserve eternal peace”…

Now, we are well aware that the Auto da Barca do Inferno has a colossal gallery that criticises contemporary society, portrayed in the harshness of a conduct that is reprehensible in the light of contemporary morals, and almost always (if not always) in the light of the morals of our days. With the particularity, we insist, of considering both the powerful and the humble in social, economic and even legal categories of the Portuguese transition of the vestiges of left over Middle Ages to the new society that was being formed by the Renaissance and by expansion, and the genial playwright of aesthetic transition that is Gil Vicente understood it and like few in his time condemned it.

The other Barcas - Purgatório (1518) and Glória (1519) are less interesting as documents and in their poetry and dramatic expression. Even so, the standard of these two plays is high, perhaps less sharp in the global expression of their actual aesthetic structure and social message. Even so, the Ploughman in Barca do Purgatório who says that “we are the life of people and the death of our lives”, or the beautiful prayer by the Pope to the Virgin Mary at the end of Barca da Glória, asking “for the countless tears / you shed that day / when your son died / deliver us from torment / without delay” – even though we acknowledge that this does not contain the strength in the verb and content and modernity of other works by Gil Vicente, we do remark on the extraordinary quality of his plays.



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