"É de Cultura como instrumento para a felicidade, como arma para o civismo, como via para o entendimento dos povos que vos quero falar"

Obras de referência da cultura portuguesa

"O LIVRO DE CESÁRIO VERDE"

de CESÁRIO VERDE

Análise de Miguel Real
Tradução: Alexandra Leitão


CESÁRIO VERDE - A PROSA NA POESIA

Em vida, Cesário Verde (1855 - 1886) apenas publicou alguns poemas esparsos nos jornais de Lisboa e do Porto e nunca viu a edição de um livro seu. Silva Pinto, seu íntimo amigo, reuniu os poemas dispersos e publicou-os em 1887, numa edição privada de 200 exemplares, com o título O Livro de Cesário Verde, reeditada comercialmente em 1901.

A poesia reunida em O Livro de Cesário Verde exprime o cruzamento entre uma poesia urbana composta de quadras de estilo realista, utilizando um vocabulário corrente, de cunho popular, e a conceção burguesa decadentista da cidade como lugar de neurose e delírio civilizacional. Realismo e decadentismo, dois sólidos motivos estéticos da Geração de 70 e da nova mentalidade europeia despertada pela publicação de Les Fleurs du Mal, de Baudelaire, enlaçam-se, gerando o lirismo urbano presente no livro singular de Cesário Verde. Com os versos deste autor, o espírito da cidade entra na poesia portuguesa, ou, dito de outro modo, os quadros mentais cosmopolitas e mundanos retratados pela prosa corrente de Almeida Garrett de Viagens na Minha Terra e dos romances de Júlio Dinis entraram pela primeira vez na poesia portuguesa.

Neste sentido, Cesário Verde evidencia-se como o primeiro grande poeta urbano português, sem paralelo na literatura do seu tempo, alimentada pelo ultra-romantismo. Por isso, os modernistas de Orpheu, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, já no século XX, resgatam a poesia de Cesário Verde e o apelidaram de “mestre”. Porém, no seu tempo, a sua poesia fora incompreendida e criticada por Ramalho Ortigão, que o aconselhara a ser menos “verde” e mais “Cesário”, por Teófilo Braga, que a não incluiu num livro que reunia jovem poesia portuguesa, e minorada por Fialho de Almeida.

De existência breve, publicando esparsamente nos jornais, de que se salientou o “Diário de Notícias” de Eduardo Coelho, certamente por este ter sido antigo empregado da loja de ferragens da rua dos Fanqueiros, em Lisboa, do pai de Cesário Verde, a poesia deste autor harmoniza-se com o novo cunho realista impresso por Eça de Queirós no conto “Singularidades de uma Rapariga Loura”, primeira obra realista em Portugal, e nos romances O Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio e A Capital!. Eça na prosa, Cesário Verde na poesia, introduzem o naturalismo/realismo como afirmação de uma visão do mundo burguesa, de mentalidade mercantil, revolucionando a literatura portuguesa, libertando-a da retórica pomposa do romantismo. A esta, Cesário Verde opõe o verso concreto, quotidiano, figurativo e visual, objetivo, retrato em quadro lírico-poético de uma cidade burguesa e operária, de estradas macadamizadas, de fábricas regurgitando fumos, de operários farruscados, varinas, floristas de rua, criadas de famílias de classe média, de candeeiros iluminados a gás, de caminhos-de-ferro, de parteiras esquadrinhando a vida das vizinhas, de vendedeiras batalhando pela vida – um mundo até então totalmente desconhecido na história da poesia portuguesa, que, como a de Antero, tematizava o “Ideal”, ou a de Guerra Junqueiro, que infernizava politicamente a monarquia do senhor D. Carlos. A poesia de Cesário retrata uma cidade tanto encantada na sua beleza e comodidade quanto, rompida a antiga harmonia comunitária, dolorosa, um lugar onde tudo é possível, seja a solidão e a miséria, seja o delírio evanescente de uma noite de irrisão de costumes.

“O Sentimento dum Ocidental”, longo poema de Cesário Verde, evidencia, assim, o homem esmagado pela cidade, desdobrado em tédio, mas também por ela fascinado, e tanto na sua beleza quanto na sua sordidez decadente. Porém, dos versos de Cesário Verde, que figuram a vida mesquinha e pomposa da cidade, nasce um lirismo terno, quase pungente, demarcando a imagem lúgubre do bairro que poderia ter sido belo e se tornara um monstro de fealdade, habitado por “prédios com dimensões de montes” e “tanta depravação nos usos, nos costumes”. Cesário Verde exprime, assim, na poesia o espírito crítico decadentista das Conferências do Casino, de 1871, rupturalizador com o otimismo fontista industrioso, permitido pelo recente e rápido progresso industrial do país.



CESÁRIO VERDE – PROSE IN POETRY

In his lifetime Cesário Verde (1855–1886) only published a few poems in the Lisbon and Oporto newspapers and never saw any of his books in print. His close friend, Silva Pinto, gathered his various poems and had them published in 1887 in a private edition with 200 copies, under the title O Livro de Cesário Verde, which was commercially re-published in 1901.

The poems in O Livro de Cesário Verde express the intersection of an urban poetry composed of realistic verses using a day-to-day vocabulary with a popular bent, and the decadent bourgeois concept of the city as a place of neurosis and civilisational delirium. Realism and decadence, two solid aesthetic motifs of the 70s Generation and the new European mentality awakened by the publication of Baudelaire’s Les Fleurs du Mal, are intermingled, generating the urban lyricism present in Cesário Verde’s unique book. With his poems the spirit of the city enters into Portuguese poetry or, in other words, the cosmopolitan and worldly mental pictures portrayed in the normal prose of Almeida Garrett in Viagens na Minha Terra and in the novels of Júlio Dinis entered Portuguese poetry for the first time.

In this sense, Cesário Verde is Portugal’s first major urban poet, unparalleled in the literature of his time, which was nurtured by ultra-romanticism. That is why in the 20th century the Orpheu modernists, Fernando Pessoa and Mário de Sá-Carneiro, rescued the poetry of Cesário Verde, whom they called the “master”. In his own time, however, his poetry was not understood and was criticised, even, by Ramalho Ortigão who advised him to be less “verde” (green) and more “Cesário”, and by Teófilo Braga, who omitted it from a compilation of young Portuguese poets, and also belittled by Fialho de Almeida.

Cesário Verde’s poetry had a short existence, having been sparsely published in the newspapers. Diário de Notícias was one, no doubt because its editor, Eduardo Coelho, had worked in the ironmonger’s shop owned by Verde’s father in Rua dos Fanqueiros in Lisbon. His poetry, however, harmonises with the new realist stance taken by Eça de Queirós in his story “Singularidades de uma Rapariga Loura”, the first realist work in Portugal, and in his novels O Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio and A Capital! Eça in prose and Cesário Verde in poetry introduced naturalism/realism as an affirmation of a view of the bourgeois world, with its mercantile mentality, revolutionising Portuguese literature and freeing it of the pompous rhetoric of romanticism. Against this Cesário Verde proposes a concrete, quotidian, figurative, visual and objective verse, a lyrical-poetical portrait of a bourgeois and working-class city, with paved streets, factories spouting smoke, grimy workmen, fishwives, flower girls, maids of middle-class families, gas streetlamps, railways, midwives dissecting their neighbours’ lives, seller women struggling to make a living – a world until then totally unknown in the history of Portuguese poetry which, like Antero’s, spoke of the “ideal”, or that of Guerra Junqueiro, which politically harassed the monarchy under King Carlos. Cesário’s poetry portrays a city that is both charming in its beauty and comfort and a place where, once the old and painful community harmony is broken, all is possible, a place of solitude and misery, or the evanescent delirium of a night of derision of customs.

“O Sentimento dum Ocidental”, a long poem by Cesário Verde, thus shows a man who is crushed by the city, sunk into tedium but also fascinated both by its beauty and its decadent sordidness. However, Cesário Verde’s verses, portraying the city’s small-minded and pompous life, also depict a tender almost pungent lyricism, showing the lugubrious life of the neighbourhood that might have been beautiful but turned into an ugly monster, inhabited by “buildings the size of hills” and “so much depravation in its habits and its customs”. So, Cesário Verde expresses in his poetry the decadent critical spirit of the 1871 Casino Conferences, which broke with the industrious optimism under Fontes which had grown out of the country’s fast and recent industrial progress.




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