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Waldemar Bastos, uma figura maior da música angolana e do mundo

Nascido em Angola mas artista do mundo, com múltiplas influências, Waldemar Bastos foi uma das figuras maiores da música africana de expressão portuguesa.


Uma das vozes mais respeitadas da música angolana das últimas décadas, o angolano Waldemar Bastos morreu de madrugada, em Lisboa, vítima de cancro, aos 66 anos, avança fonte do gabinete de comunicação do Ministério da Cultura, Turismo e Ambiente de Angola. Entretanto, a família, informa “com profunda tristeza e dor, a todos que conheciam e apreciavam a sua música, que Waldemar Bastos faleceu dia 9 de agosto de 2020, vítima de doença prolongada.”

O músico e compositor, que gravou com Arto Lindsay ou Chico Buarque, fez espetáculos com orquestras ou apenas com o violão, editou pela Luaka Bop do americano David Byrne e atuou um pouco por todo o mundo, dizia-nos, em 2016, que “em mim convivem a cultura africana e portuguesa.” Nascido na província de M'Banza Kongo, o cantor, galardoado com o prémio de Artista do Ano nos World Music Awards em 1999, estava em tratamentos oncológicos há um ano, ainda segundo o ministério angolano.

Com um percurso multifacetado de 40 anos, nunca deixou de abraçar a música de raiz angolana, mas também não prescindia de lhe atribuir novas tonalidades, com influências da música portuguesa ou da brasileira, bem como da soul, blues ou rock ocidental, tudo transposto para uma voz onde se misturava a dor e a esperança. “Ouvia música angolana, mas também Amália, Zeca Afonso, rock ou Jackson 5”, dizia, numa alusão aos primórdios do seu percurso. “O meu universo quando começo a fazer música era esse. É uma mescla espontânea entre referências africanas e ocidentais.”




Encontro com o belo

No meio de muitas mudanças, aquilo que se manteve sempre, dizia-nos em 2016, foi a “sinceridade”. “Não me meti na música com ânsia de fazer discos e aparecer na capa dos mesmos. Meti-me na música pelo encontro com o belo. Não consigo fazer nada em cima do joelho, gosto de burilar as coisas com tempo, por isso demorei sempre seis ou sete anos a lançar novos discos. O meu tempo de maturação é esse. Quero apresentar trabalhos de forma sincera, com preocupação pelos detalhes. Quando uma pessoa tem isso como verdade para si própria, os outros acabarão por sentir. Podem não ver, mas ao ouvir sentem-no.”

O seu primeiro álbum, Estamos Juntos (1983), foi gravado no Brasil, transformando-se de imediato num marco na sua carreira, tendo contado como convidados como Chico Buarque ou Jaques Morelenbaum. Em meados dos anos 1980 regressa a Portugal, já depois de aqui ter estado, a seguir à independência de Angola, em 11 de novembro de 1975, para escapar à guerra civil que assolou o país, e em 1989 grava o seu segundo álbum, Angola Minha Namorada. Em 1995, a editora americana Luaka Bop lança no mercado o disco Afropea – Telling Stories to the Sea, uma antologia onde aparecem, entre outros, Waldemar Bastos, Bonga, Cesária Évora ou André Mingas, e dois anos depois o álbum a solo de Waldemar Bastos,  Pretaluz [Blacklight], registado em Nova Iorque e produzido por Arto Lindsay. O álbum atribuiu-lhe uma nova visibilidade, alcançando excelentes críticas na imprensa internacional. O New York Times, por exemplo, considerou-o como “um dos melhores discos de world music da década”.

Nessa entrevista de 2016, o músico, que começou a tocar aos sete anos brincando com os instrumentos do pai, reafirmava o seu ativismo político na defesa da democracia em Angola, falando de música e política, com acusações de perseguição do então governo de José Eduardo dos Santos, e de ser impedido de tocar no seu país. “Em Angola querem calar a música da alma. O saco vai-se enchendo e um dia rebenta. Fui percebendo que existia interesse em mandar a música da alma para bem longe, enquanto se promovia os cantores do partido — não cito nomes, mas eles são conhecidos de todos. O propósito é simples: quer-se impor a música que se dança e não se sente e extinguir a música da alma. Porquê? Porque a música da alma leva as pessoas à reflexão, à sua evolução espiritual.” Desde que João Lourenço foi eleito novo presidente de Angola, em 2017, a relação do músico com as autoridades foi de aproximação, tendo voltado a tocar no país. O Prémio Nacional de Cultura e Artes em 2018, a mais importante distinção do Estado angolano nesta área, igualmente atribuído ao cantor Bonga, foi interpretado como parte de um processo de reconciliação nacional patrocinado pelo novo Presidente.

Apresentando-se com uma sonoridade que o próprio definia como “afro-luso-atlântica”, Waldemar Bastos foi também o único não-fadista a cantar, em 2001, na cerimónia de transladação do corpo de Amália Rodrigues, de quem era amigo, para o Panteão Nacional, em Lisboa. Ao longo dos anos esteve envolvido nas mais diversas manifestações de carácter humanista, como a recolha de fundos para o Halo Trust, juntamente com o compositor e pianista japonês Ryuichi Sakamoto, ou na abertura do festival da UNESCO Don't Forget Africa, em 2000. 




Observador e inteligente

Para o músico e percussionista Mick Trovoada, “Waldemar Bastos é uma daquelas referências incontornáveis quando se fala de música africana, atlântica, do mundo. Era não apenas um intérprete e um compositor extraordinário, como um grande ser humano, com uma sensibilidade incrível para os outros. Um homem observador e inteligente”, diz, emocionado. Conheceram-se nos anos 1980, tendo-se reencontrado há três ou quatro anos, depois de um longo interregno em que ambos seguiram caminhos separados. O concerto do reencontro deu-se em Tenerife, com Mick Trovoada, Waldemar Bastos e o moçambicano Mingo Rangel a atuarem para milhares de pessoas, recorda. “Éramos só nós os três, com aquela gente toda que não percebia as línguas que falávamos. Lembro-me que, quando o Waldemar começou o Muxima, aquilo se transformou numa espécie de missa cantada. O Mingo parou de tocar e ficou ali no palco, de pé, a chorar. O Waldemar tinha esta capacidade de tocar as pessoas, de as fazer sentir.”

Dos muitos espetáculos que fizeram juntos mundo fora, recorda como o público encontrava sempre algo de familiar na sua música. “O Waldemar ouvia muita música diferente. Fez parte de formações de géneros muito diversos ao longo da sua carreira e essa mistura de influências passou para a música dele. Talvez por isso as pessoas sentissem que havia nela sempre alguma coisa com a qual se podiam identificar.” O concerto de regresso a Angola, já com João Lourenço como Presidente, é outro dos que o percussionista guarda na memória. “Foi incrível poder vê-lo cantar ali, em liberdade, com as pessoas a cantarem com ele, emocionadas. Nos últimos anos, com a mudança [política] em Angola, parece que ele ganhou vida, força, vontade.”

Entre os projetos que partilhavam, estava aquilo a que o percussionista chama “o resgate da música atlântica”, a de vozes como Amália e Cesária Évora, que ambos acreditavam estarem ainda longe de terem o reconhecimento que merecem fora do espaço da lusofonia. “Para fazermos música hoje é bom saber de onde partimos, que música faz parte da nossa essência.” Para muitos jovens músicos hoje, garante Trovoada, Waldemar Bastos já faz parte dessa herança que importa recuperar, com a sua forma de tocar tão diferente, “com aquele dedilhar que era só dele”.

Na última década, como aconteceu no caso de Bonga, existia um processo de redescoberta do seu legado, seja por via da música, ou pelo humanismo das posições políticas, com músicos de novas gerações de diferentes aproximações estéticas, de Aline Frazão a Batida, de Sara Tavares a Boss AC, a nomearem-no como uma inspiração. A cantora e compositora Aline Frazão, 32 anos, vê-o como um representante dessa tradição musical angolana que olha para o Atlântico, o Brasil, Cabo Verde, e para o mundo, mas também para dentro. “Há espaço no país para muitas tradições musicais – para a que se vira para fora, para o oceano, e para a que se vira para dentro, para o sertão, para o continente. A minha geração recebe coisas das duas. E o Waldemar também está lá porque ele é, na verdade, universal e isso é algo que tem muito tamanho, é muito grande.”

Frazão conheceu o músico quando era ainda criança e ele seu vizinho, em Luanda. Mais tarde vieram a cruzar-se profissionalmente e, em 2013, fez a primeira parte do concerto de apresentação de Classics of My Soul, no festival Misty Fest. “Hoje é um dia muito triste. Custa-me pensar que não vou voltar a ouvir ao vivo aquela voz que tinha uma emoção incrível”, diz. Foi com essa voz que se tornou um trovador – “dizia muitas vezes que as suas eram canções da alma” –, interpretando temas que hoje se associam à guerra civil em Angola, recorda. “A música dele traz um lado menos festivo, menos dançante, da angolanidade, mas é muitíssimo importante para mim. A minha música também não é festiva. Inspiro-me muito nele e noutras figuras que trazem essa tradição meio melancólica.”

Uma tradição que, no caso de Waldemar Bastos, se faz de “belas melodias angolanas”, “com uma grande simplicidade, leve” e com uma “harmonia espetacular”. No músico e compositor, destaca ainda a capacidade de envolver quem o ouve em pequenos episódios transformados em canção. “Ele faz com a música o que o Pepetela faz com a literatura – conta-nos histórias e com isso cria um exercício de espelho. Põe-nos a olhar para nós, a pensar no que é ser artista, no que é ser angolano.” É assim, exemplifica, com Teresa Ana, tema que Frazão escolheu para abrir o concerto que deu em Lisboa em Outubro de 2016. “Teresa Ana não é só uma quitandeira, uma mulher que vende fruta no mercado, ela é qualquer mulher angolana, trabalhadora, que luta para educar os filhos, que quer a sua independência. O Waldemar faz uma homenagem a todas as mulheres ao contar um pedaço da história dela, e de repente é como se nós já a conhecêssemos.”



Identidade angolana

Paulo Flores, uma das referências da música angolana contemporânea, nunca se encontrou profissionalmente, em palco, com Waldemar Bastos mas tocaram e cantaram muitas vezes juntos em casa de amigos comuns, noite dentro. “Quem o conheceu, como eu, não vai esquecer a pureza das suas melodias, sempre marcadas pelo impacto que tinham nele as memórias de infância, os tempos da adolescência”, nem tão pouco “a sua ética, a sua intransigência de princípios, a maneira muito humana com que lidava com tudo”.

Para este cantor e compositor, “o Waldemar Bastos conservou sempre uma certa ingenuidade muito própria, uma autenticidade, uma essência intocada que passou para a música que fazia”: quer estivesse a trabalhar com a Orquestra Gulbenkian ou com David Byrne, tinha “a mesma alma, a mesma estética, a mesma força”.

Paulo Flores coloca-o ao lado de Bonga quando fala no carácter universal da sua música. “O Waldemar é um dos construtores da nossa identidade angolana, um trabalho que ainda não está acabado”, ressalva. “É também um dos grandes divulgadores da nossa cultura, um dos transformadores da língua portuguesa, que é só uma mas não é igual em toda a parte. Devemos-lhe vários daqueles temas a que hoje chamamos ‘clássicos’ angolanos e a certeza de que essa ‘angolanidade’ em construção é feita do ir e do voltar.”

No Brasil, com Chico

Aos 7 anos, Waldemar Bastos, começou a ter aulas de violão, seguindo-se a formação na adolescência de várias bandas, o que lhe permitiu atuar em toda a Angola, tocando em bailes ou concertos gratuitos. Depois da independência do país, inserido em delegações culturais, viajou por diversos países do antigo bloco soviético. Nos anos 1980, depois de ter abandonado uma delegação cultural oficial de Angola, foi para a Alemanha e, posteriormente, para o Brasil. Aí, com a ajuda de Chico Buarque, que conhecera anos antes no contexto do projeto Kalunga, gravou o seu importante primeiro álbum.

Em 1990, em Luanda (Kinaxixe), dá um concerto ao qual assistiram cerca de 200 mil pessoas. Nessa altura, o seu regresso ao país fez-se no contexto político das assinaturas do protocolo de Lusaka e do anúncio de um ambiente de paz em Angola. Goradas as expectativas, acaba por regressar a Portugal, onde grava Angola Minha Namorada (1990) e Pitanga Madura (1992), cujo tema-título haveria de se transformar num grande êxito.

Em 1997, é editado Pretaluz (1997), registado em Nova Iorque, e em 2002 sai a antologia 20 anos de Carreira, a que se seguiria, em 2005, Renascence, desta feita com o selo da holandesa World Connection. Ao mesmo tempo que nunca deixou a simplicidade do violão, também nunca deixou de tingir a sua música com outros motivos, lançando um álbum ao vivo resultante de um espetáculo no Centro Cultural de Belém, em 2013, com a Orquestra Gulbenkian, no seguimento da edição de Classics Of My Soul (2012), tendo gravado também com a London Symphony Orchestra ou a Orquestra Sinfónica do Brasil. Para sempre ficarão canções como Velha Chica, MuximaLubango, Marimbondo, Teresa Ana, Pitanga madura e tantas outras.

Era casado e deixa dois filhos. Vivia, nos últimos tempos, entre Portugal, os Estados Unidos, Angola e até Inglaterra, para onde viajava com frequência para estar com o seu primeiro neto. Sempre angolano. Sempre próximo do mundo. 


por Vítor Belanciano in Público | 10 de agosto de 2020
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

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